Mês: março 2017

Porque nenhum sonho se pode contar

“Porque nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho.”

Mia Couto in “O outro pé da sereia”

Cidade de Água

O sol e o mar recolhem-se na infância
De áridas terras e de casas frias.
São um ser que já foi, nessa distância,
De estar no Tempo em praias de outros dias.

Por dentro, é a penumbra do casulo,
Cerrado à luz na expectativa informe.
Se vou nascer – a vida não regulo;
Se vou morrer – a morte ainda não dorme.

Tinha histórias de espectros para contar,
Labirintos de seda para correr.
Tudo o que foi o inverno do luar,
Numa cidade de água a amanhecer…

Natércia Freire, Antologia Poética, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001

 

 

 

 

 

 

 

1

nomeio constelações uso-as
para me guiarem no receio das noites
escavo corpos na fexibilidade das sombras
atravesso a manhã e ponho a descoberto
a casa onde a infância secou

o olhar desce aos gestos inacabados
satura-os de jovens lágrimas de resinas
e o susto da criança que fui reaviva
um pouco de alegria no coração

Al Berto in, O Medo

Quem tem o canhé?

I

Tenho saudades do tempo
Em que corria descalço
Pelas areias do rio;
Comigo, os meus companheiros
Também descalços, correndo,
A correr ao desafio.

Tenho saudades do largo
Onde estava a minha casa,
Com mulembas altaneiras;
Tenho saudades das sombras
Com que os seus ramos cobriam,
Sempre as nossas brincadeiras.

(– Quem tem o canhé?
És tu.
Pescoço de ganso, monco do peru…
Quem tem o canhé?
Sou eu.
Diabo, diabo, não vais p’ra o Céu…)

Tenho saudades, meu Deus,
Tantas, tantas que nem sei
Como me cabem aqui;
Tenho saudades de tudo,
Tenho saudades, até,
Das saudades que senti.

II

No quintal da minha casa
Vestido de prata nas noites de luar,
As sombras das mangueiras
Eram rendas
Espalhadas
Pelo chão.

E as horas do serão
Corriam apressadas.

As moças a namorar,
As crianças a brincar
Rindo,
Cantando,
Chorando
Dum trambulhão;
As velhas, quase em surdina,
Contavam histórias do mato,
Do tempo da escravatura:
– Um branco, um coelho e um gato,
Outros bichos à mistura,
Bichos sabidos que falavam…

Depois, quando a Lua descia
P’ra se esconder no Sombreiro,
Todos, todos se juntavam
Em redor da minha Avó.
Havia quifufutila,
Havia pé de moleque…

… E a lua desaparecia
No Cassequel…

III

Onde está o meu quintal
Vestido de prata nas noites de luar,
Com rendas de sombras espalhadas pelo chão.

Onde estão esses meninos
Que riam, chorando
Dalgum trambulhão?

A Vida os levou p’ra longe de mim.

Agora, de tudo isso,
Só me ficou o feitiço
Desta saudade sem fim.
E quando a lua se esconde
No Sombreiro
Fico sozinho na praia
À laia
Não sei de quê,
Olhando o mar,
Carpindo saudades,
A olhar,
A olhar…

Almeida dos Santos (Poeta, Escritor e Jornalista Angolano)

Canhé – Brincadeira infantil.
Quifufutila – Doce de ginguba torrada, farinha de mandioca e açúcar.