Mês: junho 2015

Olhos

Olhos
Vale tê-los
Se, de quando em quando
Somos cegos
E o que vemos
Não é o que olhamos,
Mas o que nosso olhar semeia no mais denso escuro.

Vida
Vale vivê-la
Se de quando em quando morremos
E o que vivemos
Não é o que a vida nos dá
Nem o que dela colhemos
Mas o que semeamos em pleno deserto.

(poema encontrado entre os papéis de Luzmina Rodrigues)

Mia Couto in O outro pé da sereia

As Ruas

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?

Mia Couto In Tradutor de chuvas, 2011

Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, In Coral, 1950

Campo

Estou só nos campos
A doce noite murmura
A lua me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima

Sophia de Mello Breyner Andresen, In Livro sexto, 1962