Mês: novembro 2015

No jardim suburbano da minha infância afastada

No jardim suburbano da minha infância afastada
Não há hoje nada.
Quem lá vive, vive num outro □, sem mim.
A vida é assim.

É sempre viver agora no jardim que já foi
E de longe me dói.
Com os olhos rasos de lágrimas relembro-o, afastado,
Ou é no passado?

Que choro? É a vida, ou é ao jardim que findou
Porque o que é já não sou?
E a minha alma é hoje outra, o meu coração
Perdeu o irmão,

A criança que eu era, a minha antiga companhia,
A □, a alegria
E é deserto o jardim ao brincar antes agora!
Folha seca esta hora!

8 – 10 – 1919

Fernando Pessoa In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

Minha mãe

Minha mãe, dá-me outra vez
O meu sonho,
Ele era tão belo, mãe,
Que choro porque o tive…

Não era de gente,
Não era de casa,
Não era de andar num lugar,
Não sei de que era ou como era
Mas era tão belo como se eu soubesse agora isso tudo.

Não está à tua direita,
Não está à tua esquerda
E não está no teu colo,
Mas

Era uma cousa brilhante
Mas não tinha brilho…
Era uma cousa para criança,
Mas era verdade,
Era um brinquedo
E não acabava,
Era um lugar para ir
Mas a gente não voltava à noite…
Dá-me o meu sonho, mãe,
Assim mesmo como eu não sei o que ele é.

Quero voltar para trás, mãe,
E ir buscá-lo ao meio do caminho.
Não sei onde ele está
Mas é ali que está
E brilha onde eu o não vejo…
O meu sonho, mãe,
É o meu irmão mais novo.

Eu ando triste, mãe…
Triste como uma ave na gaiola,
Na gaiola desde inocente…
Dá-me o meu sonho, mãe,
E deixa-me só sonhar…

Não são todos os teus beijos
Nem todos os teus brinquedos,
Nem o teu colo onde durmo,
Que se parecem com ele
Quando o tenho, tenho-te a ti,
Ainda que lá não estejas, não me faltas lá,
Quando o tenho.

 

1916

Fernando Pessoa In Poesia 1902-1917 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

A música, a poesia

A música, a poesia,
são a casa em que vivo.
Senta-te, silenciosa,
a conversar comigo.

Diálogo interior,
só de contemplar-te.
Uma nota que falta
chora em qualquer parte.

Chora na Coreia,
ferida de ignomínia.
Perto ou longe, a mesma
palavra define-a.

João José Cochofel, “Os Dias Íntimos”

ELEVAÇÃO

I
Antes de haver luz, a ideia da luz brilhava
Em Deus que a pensava,
E porque no pensar divino a ideia da luz passou,
A luz para sempre ficou
E se fez, vinda do além da eternidade,
Chama viva, em verdade,
Que ao viver estremece e fica colorida
À dimensão de nossa alma e vida.

Antes da luz, quando a noite inda era rainha
Sobre o mundo que tinha,
Na presciência de Deus podia ser realidade
Essa luz da eternidade,
Pois o tempo não entra no divino pensar
Nem a Hora tem um lugar.

Toma assim, meu Canto, da luz o modo de estar
E fica a cismar
Como a Pomba não nascida, sobre a fundura imensa
Da consciência,
Tirando como teu quinhão esse divino pensar
Que a luz fez brotar.

Que as palavras irrompam dessa chama divina
Que em seu nome ilumina
As coisas por dentro, seu sentido elementar.
Mesmo que a terra esteja a tapar,
Em fixa aparência, o Sol em cada Criatura,
No teu voo em altura
Leva os raios do Sol ainda por nascer,
Dos quais é tecido o viver.

Eleva-te, Canção, da noite e do sofrimento
E capta a luz no momento
Antes que ela apareça no horizonte, em ascensão,
Pronta para a acção,
Trazida dos sonhos pela visão intensa
De luz imensa.

Mesmo não entendida ou acreditada,
Sê refrescada
No sopro-brisa com a manhã trazido
Do Não-nascido.
Ergue o teu voo, como pela madrugada a cotovia,
E teu rumo cria
Frente ao possível dia vivido,
Na aurora escondido.

Não importa que ninguém entenda o teu dizer.
Um tempo irá irromper
Da eternidade, como rompe cada dia
Da noite que havia.
Tuas asas tocarão a luz oblíqua das madrugadas
E, para cima levadas
Banhadas de luz, dessa luz perto estarão
Quando ainda é escuridão.

A esperança é teu voo prontamente erguido
Da noite fugido,
alegria é o tocar dos primeiros raios do dia
Que se denuncia,
Vida é o caminho que rouba o teu voo à terra soturna
Em sombra nocturna,
E estas três coisas se fazem uma em teu crer
De que é breve o sofrer.

 

II
Tu, Ave invisível, essência de espiritual fulgor
Mas que tens o teu esplendor
Na condensação da externa claridade,
Tu, que és minha e na verdade
Não minha, já que a todos na terra pertencendo,
Asas de um renascimento
Cujo canto, embora ouvido em mim, participante
De tudo no todo exultante,
Tu, ponto de encontro de mim com as asas
Em cada coisa veladas,
Tu, sopro, visto ou invisível, vapor
De abstracto amor,
Tu, exalação do voo aprisionado,
Das coisas pesado,
Tu, que em mim és medo, louco esplendor,
Tudo feitiço e dor,
Atrai-me, leva-me e ergue-te, ó puro voar,
Comigo em teu olhar,
Perdido, solto, nu e divino nas alturas
Onde está o que procuras!

Ó Cotovia-Espírito que acordas de madrugada
E és renovada
A cada vinda do sol que se revela,
Sendo a mais sábia parcela
De toda a mensagem ao nosso terrestre ver
Do dia que vai se erguer!
Ave sem peso que nem os campos conseguem chamar
Mas que tem de realizar
O seu destino no ar, sobre pântanos desolados
E fundos prados,
Com a Grande Trombeta nas livres alturas a viver
Mesmo ainda por nascer!
Ó Ave estéril, sem ninho ou lar possuir,
Apenas o que surgir,
Que só tens voz quando, no alto, a pairar
Sobre ninho, amor e lar,
Pensando apenas no dia que vai nascer,
Mesmo se longe estiver,
Pareça, aos que medem teu voo na subida
Só pela altura atingida
E não pela intenção, que é levada
Da vida e ligada
Àquelas horas divinas que só as coisas aladas
Encontram com suas asas!
Ó Ave de canto impiedoso e voto indizível,
Cujo voo alcança em seu nível
Alturas imensas, de ar puro, libertadas
De alegrias medidas, pesadas!
Leva em teu propósito todo o meu coração
E faz o voo da minha canção
Descer à terra, semelhante ao teu canto
Em estranheza e encanto
À distância, a perder-se em mistérios sem fim
Lá ao longe! Canta, sim,
Seja meu peito o que diz teu cantar,
Minha vida teu voar,
Meus medos e esperanças teu som nas notas que fluem
E a mim flutuem,
E seja o alto desígnio oculto em meu fado
Pela tua altura dado!

Meu coração será feliz assim, mesmo se dorido,
Livre, inda que oprimido,
Para manter a alta alegria donde vem o encanto
Do teu ao nosso canto.
Possa então a alma ser feliz, plena e em liberdade.
Oh, em felicidade
Ergue-me de mim e eleva-me a vida até possuir
O que tentas conseguir —
A luz, o céu, a distância e o amanhecer
Até que eu, por nascer
De novo para a dispersão pura nos mares
Dos elevados ares
Que te falam da luz, antes da luz nascer e o dia,
Até que a alegria
De ser, sem meu ser, me vá transformar
Em céu e cantar!

Fernando Pessoa In POESIA INGLESA II , O Rabequista Mágico, Assírio & Alvim , edição e tradução de Luisa Freire, 2000

Terra de Esperança

Um dia, parado o tempo,
Nossas vidas cruzarão
Livres de Nome ou Lugar.
E de nós só ficarão
As melhores coisas que havia
De acordo com esse Dia.

Amaremos de outro modo
Questionando o velho amor
Que antes nos comovia,
Quando solidão e dor
Era o que a alma ganhava
Da contingência em que estava.

Ali, o céu entre nós
Ao tacto real está,
A textura luminosa
De nossas vidas, trará
Deus, em sopro, ao nosso qu’rer.
Morte ali não tem poder.

O sofrer ou suspirar,
O cuidado, o desencanto,
A expectativa e o grito
Que vai do prazer ao pranto,
Nada precisa de estar
Onde eterno é o amar.

As horas farão o amor
Mais jovem e duradouro.
Antes do tempo conseguem
Refazer mais puro o ouro.
E não haverá lamento
Possível ao pensamento.

Nessa região suspensa
Sob o céu, só claridade,
Nossas almas se confundem
Em verdadeira unidade
E nada será capaz
De ao peito tirar a paz.

Terra dourada onde Deus
Em Seu Tempo um Dia andou
Não como no mundo, onde Ele
Nem um momento habitou,
Onde Seu passar se sente
Como algo sempre ausente.

Meu coração pensa nisto
E sofro p’lo só sonhado
E ela, que me faz feliz
No velho amor renovado,
Irreal é como o sonho
Que nestes versos componho.

Mas, quem sabe? Talvez isto
Não seja querer, mas visão.
Talvez o amor, felicidade
Que sinto na sem-razão
Seja outra realidade
Que o sonho vê de verdade.

Talvez que donde se encontre
Isto lance o seu conjuro.
Alguma coisa impossível?
Terá Deus confins ou muro?
Se este sonho aconteceu,
Não pode um dia ser meu?

Quem sabe o que são os sonhos?
E quem sabe o que Deus faz?
Talvez só a vida impeça
A revelação que traz
Beleza da fantasia.
Nada é só o que parecia.

Algures, bem perto de Deus,
Tudo será já visível.
Oh! que eu não duvide mais
De que isto seja possível!
Mais estranho o que se tem
Que a centelha do além.

Meus olhos, de prazer, loucos
Porque tenho este pensar.
Eles não podem deter-me
Pois Deus não deixa de dar
Para o alto pensamento
O leve dom do momento.

Meu jardim está agora
Pleno, em nova floração,
A boca beija a alegria.
Porquê, não sei a razão.
Com o coração parado
Em águas de luz eu nado.

Um halo de esp’rança envolve
A alma. Sou a criança
Que exclama: Vede! Encontrei
A estranha flor da esp’rança.
Ignota flor enterrada
De mortos sonhos gerada.

Senso tremente de ser
Mais que ao senso é permitido,
Ave do sentir ao ver
O ouro da terra escondido
Romper numa alvorada
Em sopro, luz desmaiada,

A presença entretecida
Com raios duma luz distante,
Fascínio, poder roubado
De alegria radiante,
Eu me esvaio e desfaleço
E o próprio sonho pareço.

E se não for como o vejo
Oh, Deus, trá-lo até mim!
Afasta de mim a dor
Porque Te sonhei assim!
Que aquilo que tanto anseio
Seja este divino enleio.

Que isto se pareça ao céu
E seja sempre meu lar,
Mesmo que o viver implique
Só esta hora gozar.
Em Deus será um instante
Eternidade bastante.

Fernando Pessoa In POESIA INGLESA II , O Rabequista Mágico, Assírio & Alvim , edição e tradução de Luisa Freire, 2000

O Fim

Deus sabe. Fiquemos deitados
Contentes de assim dormir,
Sorrindo o que já chorámos;
Como em reinos a ruir
Em fundo silêncio, as estrelas
Sorriem, nem sabem elas.

Deus sabe. Mas Ele não soube
E se não, o que fazer?
Não importa se não coube
Nossa vida no viver.
P’lo sono e lágrimas ledos,
Embalemos nossos medos!

Fernando Pessoa In POESIA INGLESA II , O Rabequista Mágico, Assírio & Alvim , edição e tradução de Luisa Freire, 2000

Promessa de uma noite

cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo

a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor

Mia Couto In Raiz de Orvalho e Outros Poemas, 1999

infância

Sempre o mesmo desejo
de voltar às praias
da infância:
argúcia dos dedos na areia
alegria dos olhos na espuma…

mas como voltar aos trilhos
apagados?
e como voltar às fontes
incendiadas?

(ao invés deste desejo
eis-me espiando o futuro
que nunca vivo!)

Armando Artur

VERSOS DO PRISIONEIRO – ÚLTIMA CARTA DO PRESO AO POETA

Durmo sem corpo
como um cão
que, em si mesmo,
inventa um travesseiro.

Enroscado como o feto
que adia o dia
e procura a luz
na raiz do próprio ventre.

Aqui se dorme como se vive:
com pouca pátria e muita insónia.

Dormirei tudo, sim,
quando valer a pena despertar.

No enquanto da espera,
me vou, por vezes, suicidando.
Nesses dias, não risco o tempo das paredes.

E é tanto o desejo de desviver
que já não me basta morrer.

A morte perdeu a validade,
de tanto nela me aconchegar.

A ausência que desejo
é a da viagem sem distância,
sombra sem tecto nem parede.
Onde reine, não o silêncio,
mas a palavra emudecida.

Que eu sonho a morte
como o poeta quer o poema:
um falso morrer
de quem não quer viver em falso.

 Maputo, 2006
Mia Couto in ” Idades, cidades e divindades”

Cântico

Belo é ver florir os galhos
das velhas árvores.
E ver chegar as aves
que voltam do Sul.
Belo é o sangue rubro
dum lanho fresco,
e o riso que nasce
das nossas palavras.
Belo é o vir da manhã
sobre os telhados nus
das cidades brancas.
E mais belo ainda
que este sol visível
enflorando, amor,
teus longos cabelos
de guizos dourados:
mais belos que os ventos
cavalgando as nuvens
e dizendo-nos: vinde!,
e que o meu gênio abrindo
suas asas nos céus:
 
Mais belo que o fluir
silente desta célula
fluindo nos cosmos:
Mais belo, amor,
que a tua própria beleza
 
é este sol inviolável,
rútilo, no fundo de nós.
Papiniano Carlos