Os simples

Acabaram-se talvez os excessos e os impulsos
Dissipámo-nos na luz como uma sombra.
Mas as palavras continuam feridas e comovem-se
em presenças verticais no vento, em obscuras chamas.
Que alianças, que pedidos sem fim, que consentimentos
perduram ainda nas palavras feridas!
É já a música nos flancos e nos ombros 
e a argila leve do desejo e um frêmito de folhas
e o vento e a ausência que quase diz um nome.
Nós aceitámos o ardor e o luto, o deserto das mesas.
Porque quisemos recomeçar na génese das pedras
ao nível do repouso simples das folhas e da cinza.

António Ramos Rosa, em “No Calcanhar do vento”, 1987.

Sazonais eternidades

Abres-me, janela,
e antigas memórias
me salpicam o rosto,
chuvas ainda por desabar.

Escancaradas portadas,
devolvem-me o corpo,
esse mesmo corpo
que, para febre e desejo,
em outro corpo acendi.

Abres-me, saudade
e o tempo se descalça
pra atravessar
incandescentes brasas.

e quando,
de novo, me encerras
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.

Mia Couto, In Tradutor de chuvas

Tempo

Eu não amava que botassem data na minha existência.
A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data
maior era o quando. O quando mandava em nós. A
gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio.
Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma
árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou:
tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra
eu posso conviver com os lagartos e com os musgos. Assim:
tem hora que eu sou quando um rio. E as garças me beijam
e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava
nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi
voltar quando infante por um gosto de voltar. Como
quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de
um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora
nossos irmãos, nosso pai,nossa mãe e todos moramos
no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não
tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase
roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava
para nós. O pai passava o seu dia passando arame
nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de
cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de
areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua
língua fininha um lagarto. E ali ficava cubando.
Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato,
Folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios
que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente
era quando crianças. Quem é quando criança a natureza
nos mistura com as suas árvores, com as suas águas,
com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não
gostasse de botar data na existência. Por que o
tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás
botando a palavra quando de suporte.
 
Manoel de Barros, em Memórias Inventadas

VI

Desde o começo do mundo água e chão se amam
e se entram amorosamente
e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios
E nascem pássaros para habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das
suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.
Agora eu penso nas águas do Pantanal.
Penso nos rios infantis que ainda procuram declives
para escorrer.
Porque as águas deste lugar ainda são espraiadas para
alegria das garças.
Estes pequenos corixos ainda precisam de formar
barrancos para se comportarem em seus leitos.
Penso com humildade que fui convidado para o
banquete destas águas.
Porque sou de bugre.
Porque sou de brejo.
Acho agora que estas águas que bem conhecem a
inocência de seus pássaros e de suas árvores.
Que elas pertencem também de nossas origens.
Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas
as plantas.
Vez que todos somos devedores destas águas.
Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que
trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa
inocência de nossas origens.

Manoel de Barros, em Menino do Mato

Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto, In Raiz de Orvalho e outros poemas

A espera

Aguardo-te
como o barro espera a mão.

Com a mesma saudade
que a semente sente do chão.

O tempo perde a fonte
e a manhã
nasce tão exausta
que a luz chega apenas pela noite.

O relógio tomba
E o ponteiro se crava
No centro do meu peito

Fui morto pelo tempo
No dia em que te esperei.

Mia Couto, In Idades Cidades Divindades

Mordiscas-me os lábios

cão pássaro rapaz
(não quero que te vás embora
e sei que vais ter de te ir embora)
quero dormir contigo
com a tua mão
sobre o meu coração
para que saibas
os meus segredos
beliscas-me ao de leve
eu sei que não é um sonho
mas é como um sonho
para mim

Adília Lopes, Dobra (Poesia Reunida 1983 – 2007)

Uns homens estão silenciosos

Eu os vejo nas ruas quase que diariamente.
São uns homens devagar, são uns homens quase que misteriosos.
Eles estão esperando.
Às vezes procuram um lugar bem escondido para esperar.
Estão esperando um grande acontecimento.
E estão silenciosos diante do mundo, silenciosos.

Ah, mas como eles entendem as verdades
De seus infinitos segundos.

Manoel de Barros

Para mi corazón basta tu pecho

Para mi corazón basta tu pecho,
para tu libertad bastan mis alas.
Desde mi boca llegará hasta el cielo
lo que estaba dormido sobre tu alma.
 
Es en ti la ilusión de cada día.
Llegas como el rocío a las corolas.
Socavas el horizonte con tu ausencia.
Eternamente en fuga como la ola.
 
He dicho que cantabas en el viento
como los pinos y como los mástiles.
Como ellos eres alta y taciturna.
Y entristeces de pronto, como un viaje.
 
Acogedora como un viejo camino.
Te pueblan ecos y voces nostálgicas.
Yo desperté y a veces emigran y huyen
pájaros que dormían en tu alma.
 
Pablo Neruda, in Veinte poemas de amor y una canción desesperada

Mudança de estação

para te manteres vivo — todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma — puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado

deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio — uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento

passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar — crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória

luzeiros marinhos sobre a pele — peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação

Al Berto, Horto de Incêndio, Assírio & Alvim, 1997

O momento de

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. 0lha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.

António Ramos Rosa. A nuvem sobre a página. Lisboa: Dom Quixote, 1978.

Despedida

Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo de
silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.

Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959

Epitáfio

Eu um dia serei uma poalha de vento
pousando inadvertidamente em tua face

e me sacudirás

Eu um dia serei uma réstea de chuva
caída por acaso em tua fronte

e me sacudirás

E eu um dia serei a última lembrança
imponderável já na tua mente

e então me esquecerás

Glória de Sant’Anna, Amaranto, Poesia 1951 – 1983. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988

És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza

Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. (…)

E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. (…)  Por que não escreveste nunca? Não é de te ler que mais tenho saudade. É o som da aca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém.

Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.

Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca. (…)

 Nessa espera, aprendi a gostar de ter saudade. Recordo os versos do poeta que diziam “eu vim ao mundo para ter saudade”. Como se apenas pela ausência eu me povoasse interiormente. Seguindo o exemplo dessas casas que só se sentem quando estão vazias. Como esta casa que agora habito.

A dor de um fruto já tombado, é isso que eu sinto. O anúncio da semente, é isso que espero. Como vês eu me aprendo árvore e chão, tempo e eternidade.

— És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.

Era assim que dizias. E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e, entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste? E me respondias, voz trémula: estou nascendo agora. E a tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar: onde nasceste? E tu, quase sem voz, respondias: estou nascendo em ti, meu amor. Era assim que dizias. Marcelo, tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas que me despia para ler as tuas cartas.

Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro.

Marta, para Marcelo
Mia Couto, Jesusalém