Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. (…)
E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. (…) Por que não escreveste nunca? Não é de te ler que mais tenho saudade. É o som da aca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém.
Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.
Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca. (…)
Nessa espera, aprendi a gostar de ter saudade. Recordo os versos do poeta que diziam “eu vim ao mundo para ter saudade”. Como se apenas pela ausência eu me povoasse interiormente. Seguindo o exemplo dessas casas que só se sentem quando estão vazias. Como esta casa que agora habito.
A dor de um fruto já tombado, é isso que eu sinto. O anúncio da semente, é isso que espero. Como vês eu me aprendo árvore e chão, tempo e eternidade.
— És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias. E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e, entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste? E me respondias, voz trémula: estou nascendo agora. E a tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar: onde nasceste? E tu, quase sem voz, respondias: estou nascendo em ti, meu amor. Era assim que dizias. Marcelo, tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas que me despia para ler as tuas cartas.
Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro.
Marta, para Marcelo
Mia Couto, Jesusalém