O sol feliz está a brilhar;
O campo é verde e contente,
Mas tenho o peito a ansiar
Por algo que está ausente.
Anseia por ti somente,
Anseia por beijos teus.
Não importa se és fiel
A isto.
O que importa é tu somente.
Sei que o mar está cintilante
Debaixo do sol de verão.
Sei que as ondas são brilhantes,
Cada uma e todas são.
Mas ‘stou de ti afastado,
Oh, dos teus beijos ausente!
E isso é o que há de verdade
Nisto.
O que importa és tu somente.
Fernando Pessoa In Poesia Inglesa , Assírio & Alvim, Obra Essencial de Fernando Pessoa, ed. de Richard Zenith, 2007
Se eu não te disse nunca que te amava,
Perdoa-me, mulher, sou innocente:
Eu vivia de amar-te unicamente,
Unicamente em teu amor pensava.
Se os meus labios calavam-se, falava
O meu olhar apaixonadamente,
Porque, se o labio occulta o que a alma sente,
Conta o olhar o que o labio não contava.
Meu rosto triste, meu scismar constante,
Meu gesto, meu sorrir, tudo exhalava,
Tudo exprimia um coração amante.
Em tudo o meu amor se denunciava,
Via-me em toda a parte e o todo o instante,
Se estavas longe, se comigo estava.
Guimarães Passos In Versos de um simples, 1891
Vou em mim como entre bosques
Vou-me fazendo paisagem
Para me desconhecer.
Nos meus sonhos sinto aragem,
Nos meus desejos descer.
Passeio entre arvoredo
Nos meandros de quem sinto
Quando sinto sem sentir…
Vaga clareira ou recinto,
Pinheiral todo a subir…
Grande alegria das mágoas
Quando o declive da encosta
Apressa o passo sem querer…
De quem é que a minha alma gosta
Sem que eu tenha de o saber.
Sorriso que no regato
Através dos ramos curvos
O sol, espreitando, achou.
Fluir de água, com tons turvos,
Onde uma pedra a desviou.
Muito curva, muita cousa,
Todas com gentes de fora.
Na alma que sinto assim…
Que paisagem quem se ignora!
Meus Deus, o que é feito de mim?
Fernando Pessoa In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido,
«Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!
Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p’ra outro dia;
E toda a tristeza minha
Era, ao acordar, p’ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo.»
Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.
E, enquanto o avô cisma, e triste
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;
E o neto, olhando afinal
E vendo o avô a chorar,
Diz, «Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar.»
Fernando Pessoa In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005